"Trabalhando com conflitos familiares, aprendi a ouvir"
Convidado a opinar sobre Cezar Peluso, que deixa a Presidência do STF esta semana e se aposenta em setembro, José Carlos Moreira Alves, que foi ministro da Corte por quase 30 anos, o descreve como “um magistrado que se baseia na lei para julgar” — expressão que, no linguajar severo e crítico do ministro aposentado, tem significado especial.
Nesta primeira parte da série de entrevistas e textos sobre Peluso, começa a entrevista em que o ministro mostra suas características incomuns. O que será reforçado pelas falas e depoimentos de diversos personagens, dos filhos a desembargadores e juristas, que se seguirão.
Nascido em Bragança Paulista (SP) em 3 de setembro de 1942, Antonio Cezar Peluso — cursou o ginásio no Seminário Diocesano São José, de São Vicente, Estado de São Paulo, entre 1955 e 1958. O sonho de ser padre foi trocado, nos tempos do Curso Clássico, realizado no Colégio Estadual Arnolfo Azevedo, de Lorena (SP), e no Instituto de Educação Canadá, de Santos (SP) (1959 a 1961): agora, queria ser professor de Letras Clássicas — latim, grego e português. Sensato, acolheu a recomendação familiar e se formou em Direito pela Faculdade Católica de Santos (1962-1966).
Fez o curso de especialização em Filosofia do Direito, sob orientação do professor Miguel Reale, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1967) enquanto advogava na Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista) até chegar à idade mínima de 25 anos, exigida então para prestar concurso de ingresso no Judiciário paulista (janeiro de 1968). Sua estreia como juiz substituto aconteceu na 14ª Circunscrição Judiciária de Itapetininga, na época conhecida como “o ramal da fome”, pela pobreza de suas cidadezinhas. Dali foi para São Sebastião, no litoral, sua primeira entrância, ficando de 27 de novembro de 1968 a 18 de fevereiro de 1970.
A segunda entrância, exercida de 19 de fevereiro de 1970 a 1º de agosto de 1972, foi em Igarapava, de onde se removeu para a capital, como juiz substituto da Capital, 3ª entrância, promovido por merecimento, onde permaneceu de 2 de agosto de 1972 a 15 de dezembro de 1975.
A seguir foi juiz de Direito da 7ª Vara da Família e das Sucessões da Capital, entrância especial, promovido por merecimento, no período de 16 de dezembro de 1975 a 10 de novembro de 1982. Durante esse tempo, exerceu também a função de juiz auxiliar da Corregedoria-Geral de Justiça, convocado pelo Conselho Superior da Magistratura, no período de 1º de janeiro de 1978 a 31 de dezembro de 1979.
Esse período à frente da 7ª Vara da Família foi de muitos estudos e dedicação. Fez o mestrado em Direito Civil sob orientação do professor Silvio Rodrigues, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, seguido pelo Doutorado em Direito Processual Civil, sob orientação do professor Alfredo Buzaid, também na USP (1972 a 1975), emendando com outra especialização em Direito Processual Civil, sob orientação do professor José Manuel de Arruda Alvim Neto, na Faculdade Paulista de Direito da PUC-SP.
Por merecimento também, deixou a Vara da Família para entrar no Segundo Tribunal de Alçada Civil, na 5ª Câmara, onde permaneceu de 11 de novembro de 1982 a 13 de abril de 1986, quando foi promovido a desembargador do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, na 2ª Câmara de Direito Privado (14 de abril de 1986 a 25 de junho de 2003), tornando-se membro efetivo do Órgão Especial do TJ-SP até o fim de sua atuação, quando foi indicado para o Supremo Tribunal Federal.
Como desembargador, dirigiu e revitalizou a Escola Paulista da Magistratura e, entre outras iniciativas, criou a revista Diálogos&Debates.
Leia a primeira parte da entrevista de Peluso:
ConJur — Como foi o seu tempo de formação? O senhor inicia sua vida profissional em plena vigência do Regime Militar.
Cezar Peluso — Sim, em 1964 eu estava com 22 anos. E cursava o segundo ano da faculdade de Direito, era presidente e orador especial do Centro Acadêmico Alexandre de Gusmão. Um grande diplomata do Império português, santista como José Bonifácio. E que foi o urdidor do Tratado de Madri, de 1750, que estabeleceu os limites de fronteiras entre os domínios coloniais portugueses e espanhóis, tornando o Brasil maior do que era até então.
ConJur — Como avalia hoje a ideologia daquele período?
Cezar Peluso — Foi um período de paranoia da classe média brasileira contra o risco do regime comunista no Brasil. Desde criança, escutava que o comunismo tirava a propriedade de todo mundo... Foi uma intoxicação cultural que deixou apavorada a classe média. E ela recorreu a tudo, desde os quartéis até os padres, igreja e jornais.
Neste clima de paranoia, a Folha de S.Paulo chegou a ceder caminhonetes para cumprir algumas missões da OBAN [Operação Bandeirante, centro de investigações montado pelo Exército em 1969 para o combate a organizações de esquerda]. E a classe média foi para as ruas na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Criou um forte movimento popular contra a classe operária, contra o governo, sobretudo contra o PTB e os partidos de esquerda. Foi um total pavor contra a possibilidade da introdução do regime socialista e comunista do Brasil. E aí se orquestraram as condições para a chegada do golpe militar.
ConJur — E como o senhor se situava nessa época?
Cezar Peluso — Eu era uma pessoa de classe média, nem era classe média-alta, era média-média. Com um entorno familiar com essas mesmas preocupações, participei do medo que a minha classe alimentava.
ConJur — O senhor flertou com a esquerda?
Cezar Peluso — Pelo contrário, ganhei a eleição do Centro Acadêmico Alexandre de Gusmão contra a chapa de esquerda. Naquela época, veja, meu pai era jornalista. Primeiro foi locutor de rádio em Bragança Paulista. Largou um belo emprego que tinha na Caixa Econômica para vir trabalhar na Rádio São Paulo, que ficava numa esquina da Avenida Angélica, era uma das melhores emissoras da capital. Ele produzia novelas, tinha um programa às 7 horas da manhã chamado Terra Simples Terra, que era sobre músicas do interior. Nasci em Bragança, como o Cásper Líbero. Meu pai exerceu depois um jornalismo diferente, criou um jornal que circulava entre os prefeitos e cidades do interior. Os prefeitos faziam propaganda de suas obras no periódico criado por ele, publicavam anúncios, pagavam e distribuíam esse jornal. Ele trabalhou também para outros jornais.
ConJur — E o senhor ainda mantém laços com Bragança Paulista?
Cezar Peluso — Ainda tenho parentes que moram lá, mas fiz toda a minha trajetória longe dali.
ConJur — Aí o senhor foi para o seminário?
Cezar Peluso — Fui para o seminário quando tinha 10 anos de idade porque o irmão do meu pai era bispo de Lorena, Luiz Gonzaga Peluso (1907-1993), que depois foi o primeiro bispo de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo. Naquele tempo, a figura do bispo era uma figura super-respeitada. Eu dizia que queria ser bispo, fui para o seminário e fiquei quatro anos. Quando saí, fui morar com meu tio bispo em Lorena e fiquei dois anos ali, fazendo o secundário, na época o Clássico. Estudava em estabelecimento do estado, fiz ótimas amizades, ganhei o Concurso Euclides da Cunha, uma promoção cultural de alta visibilidade no estado de São Paulo. Concorri com um grande número de candidatos. Em São José do Rio Pardo, quando fui para participar da maratona euclidiana, cheguei a conhecer um homem que conviveu com Euclides da Cunha, o Paschoal Artese, um grande jornalista daquela cidade. Convivi também com um oculista que era o maior conhecedor de Euclides. Fiquei hospedado na casa dele quando fui participar do certame em São José do Rio Pardo. Ganhei desse oculista muitos livros do Euclides da Cunha. Na época estava com 17 anos [completaria 18 poucos dias depois da 48ª Semana Euclidiana],e concorri representando o Colégio Estadual Arnolfo Azevedo, de Lorena.
ConJur — Então o senhor leu Euclides da Cunha? [risos]
Cezar Peluso — Sem dúvida, Os Sertões é um livro difícil, mas Euclides tem vários outros livros, como Peru versus Bolívia, Contrastes e Confrontos e À Margem da História. Ele foi um homem importante, inclusive com atuação no Ministério das Relações Exteriores, em que trabalhou ao lado do Barão do Rio Branco. Ele percorreu os limites do Brasil, um homem polivalente. Personalidade fascinante, disputou com o maior filosofo brasileiro, o Farias Brito, a cátedra de lógica do Colégio Pedro II e ficou em segundo lugar, sendo nomeado para o cargo. Muitos anos depois, o professor Miguel Reale produziu um comentário sobre a tese do Euclides nesse concurso para a cátedra de lógica. Mas nos tempos do secundário, os professores cobravam muita leitura. Todos os clássicos brasileiros, das Memórias de um Sargento de Milícia, de Manuel Antônio de Almeida, às Memórias Póstumas de Braz Cubas, além dos outros livros do Machado de Assis, os do José de Alencar. Mas o Euclides foi uma marca.
ConJur — Voltando para questão ideológica, o senhor participou de um grupo de estudos criado pelo Dom Paulo Evaristo Arns. Qual a preocupação daquelas reuniões?
Cezar Peluso — Era um grupo que se reunia para refletir sobre os acontecimentos do Brasil daquela época. Nunca fomos ativistas. Era um grupo de reflexão e de estudos, não de militância.
ConJur — Como juiz, o senhor fez um trabalho de ativista muito grande, inclusive a criação dos centros integrados da cidadania.
Cezar Peluso — Isso foi na época do Mario Covas, mas aí houve uma colaboração com um governo sério no qual a gente acreditava que poderia fazer alguns avanços. Mas nunca fui um ativista político. Os encontros realizados nesse grupo liderado pelo Dom Paulo Evaristo Arns eram para reflexão. Ouvíamos, por exemplo, o Leonardo Boff falar e depois discutíamos juntos. Chamávamos gente importante para expor ideias nesses encontros.
ConJur — O senhor conheceu o teólogo Joseph Comblin?
Cezar Peluso — Sim. Tivemos uma reunião com ele nesse grupo de estudos e ele falou uma coisa tão interessante para nós, que marcou muito: “Vocês já repararam como se come na Bíblia”? Discorreu sobre a representação da comida e de como os textos bíblicos dão relevo para o fato de as pessoas comerem. Ele estava comentando o Velho Testamento. Nesse período, convivemos com várias pessoas ligadas à teologia da libertação, que eram convidadas para esses debates, como o grande teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, além do próprio Leonardo Boff.
ConJur — Na reportagem da revista Piauí sobre o Supremo, foi citado seu interesse pelo Fulton Sheen... [risos]
Cezar Peluso — O Fulton Sheen era arcebispo de Nova York, mente arejada, e naquela época era mais ou menos como o Padre Marcelo hoje. Ele escrevia muito bem. Sofri influências desses intelectuais, gostava de ler seus livros.
ConJur — Chegou a ler Thomas Merton?
Cezar Peluso — Opa! Homem Algum é uma Ilha, A Montanha dos Sete Patamares... Li toda a literatura religiosa dessa época. Ainda tenho uma biblioteca grande de livros sobre Teologia da Libertação.
ConJur — O senhor sempre foi religioso?
Cezar Peluso — Minha família sempre foi muito religiosa. Sou religioso hoje tanto quanto era naqueles tempos. Vou à missa.
ConJur — O senhor teve problemas com a ditadura?
Cezar Peluso — Nunca. Nunca hostilizei, mas nunca deixei de cumprir o que tinha de fazer. Está certo, está certo. Está errado, está errado. É certo que havia ali um general, superintendente da Petrobrás, e um delegado da polícia, que deram muito trabalho. Um dia o delegado invadiu a casa do secretário da Câmara de Vereadores sob o pretexto de pegar as fitas de gravação de uma sessão, quando um dos vereadores teria atacado a revolução. Só que o rapaz deu um couro no delegado e caiu fora, fugiu da cidade. E o delegado foi atrás dele. Naquela época, a lei em vigor, por um decreto-lei baixado pelo presidente Castelo Branco, criava o crime de abuso de autoridade. Essa medida foi baixada pelo Castelo por causa dos excessos praticados por militares e policiais naqueles primeiros anos do Regime Militar. Essa lei previa que para o promotor fazer a denúncia por abuso de autoridade não havia necessidade de instaurar inquérito. O promotor era o meu compadre, foi promotor de Caraguatatuba, o Antonio de Pádua Assis Moura. O vereador estava fugido e não podia voltar para a cidade, pois o delegado iria prendê-lo. E ele escreveu para o promotor contando tudo, que o delegado invadira sua casa à noite e sem um mandado. Era o caso típico de abuso de autoridade e o promotor me avisou que iria denunciar esse delegado. Eu disse: “Não faz isso, pois se fizer, eu recebo a denúncia”. Ele denunciou. E eu recebi a denúncia! [risos]
ConJur — E isso gerou consequências, certo?
Cezar Peluso — O delegado e o general botaram os militares todos em movimento, vieram representantes do Tribunal Militar de São Paulo e pediram a avocação da ação penal para trazê-la para São Paulo. Eu estava na minha primeira entrância, era um juiz novo, tinha apenas três anos de magistratura. As nossas garantias estavam todas suspensas naquela época, sob o governo do marechal Costa e Silva. Eu ainda novato, os militares em cima, querendo tirar o processo, o delegado de polícia fazendo pressão. Pedi uma audiência com o corregedor e vim a São Paulo falar com ele. O corregedor era o doutor Hildebrando Dantas de Freitas, homem seriíssimo, mas que se encontrava de férias. No lugar dele estava outro desembargador, cujo nome obviamente não irei declinar, o mais velho da Seção Criminal. Cheguei e me apresentei e relatei o que estava acontecendo. Para surpresa minha, ele em vez de dizer que eu havia cumprido a minha função, comentou: “O senhor não acha que foi imprudente em receber essa denúncia?” Respondi: “O senhor me desculpe, mas acho que é o caso de receber a denúncia. E vim aqui comunicar essa decisão”. Fui embora. Fiquei louco da vida. Quando o Hildebrando retornou das férias, voltei para contar o caso. “Já fui juiz, o senhor cumpre a sua função e eles que cumpram a deles”, foi a resposta. “O senhor fez muito bem”. Não fizeram nada. Mas tiraram o processo de lá.
ConJur — Ficou por isso mesmo?
Cezar Peluso — Vou contar uma história que já é folclore. Quando fui a São Sebastião, em 27 de novembro de 1968, para azar do regime militar, eles nomearam como interventor um armador de navio de São Vicente, o Mansueto Pierotti, que é hoje nome do Estádio de Futebol daquela cidade. E ele chegou como interventor a São Sebastião e a primeira coisa que fez foi ir até a minha casa. “Doutor, vamos trabalhar em conjunto, faço apenas as coisas que o senhor me instruir. Acabou a farra”. E eu respondi: “Então, a primeira coisa que quero é que o senhor tire esse delegado daqui”. E uns quinze dias depois aquele delegado foi removido. Não acontecia nada em São Sebastião que o prefeito não viesse falar antes comigo. Ele era um homem muito sério. E dizia coisas interessantes. “O senhor toma cuidado, se o senhor vir mendigo em frente à calcada de sua casa, pode ter certeza de que é gente do SNI”.
ConJur — Depois o senhor foi juiz de Igarapava.
Cezar Peluso — É a última cidade na rodovia Anhanguera antes da divisa com Minas Gerais, na beira do Rio Grande. Atravessa 30 quilômetros e já está em Uberaba. Foi a minha segunda entrância, exercida de 19 de fevereiro de 1970 a 1º de agosto de 1972. Nas cidades do interior, o juiz faz de tudo, à moda antiga. Lá em Igarapava, por exemplo, eu lidava com todo mundo, o promotor, delegado de polícia, todos operavam no mesmo prédio. O cidadão chegava com uma queixa ou dúvida e era encaminhado na hora para a sala ao lado, falava com o delegado, ou com o promotor, com o juiz. Cuidei com especial carinho de um orfanato, criado pelo juiz que me precedeu. Guardo boas recordações daqueles tempos. Depois, vim para a capital, na terceira entrância.
ConJur — O senhor é conhecido como autoridade em Direito de Família.
Cezar Peluso — Não é bem assim, mas foi mais ou menos assim [risos]. Quando fui nomeado juiz substituto, quem me recebeu não foi o juiz titular da comarca, mas um juiz que morava em Itapetininga, mas era magistrado de uma cidade vizinha, Angatuba. Seu nome era Paulo Soares Hungria. Era bem mais velho do que eu, muito simpático. Eu era um garoto, tinha 25 anos. Muitos anos depois, eu estava voltando para São Paulo, para a terceira entrância, tinha sido indicado para a Vara Cível, que era tudo o que eu queria. E com certeza seria nomeado. Então o amigo Paulo Soares Hungria me liga com um pedido: “Vou me aposentar daqui a uns dias e estou adoentado, ainda não sou juiz de entrância especial e queria saber se o senhor não se incomodaria em falar com o secretário da Justiça dizendo que abre mão de sua promoção para ele me nomear”. Como poderia negar uma coisa dessa a quem me recebera tão fraternamente quando era ainda substituto? Prometi falar com o secretário. Assim fiz, liguei para o secretário de Justiça, na época o Dr. Manuel Pedro Pimentel, e disse que gostaria de não ser promovido em benefício do Soares Hungria. Foi uma ousadia, pois nem o conhecia. “Estou num lista de promoção, mas existe o Dr. Paulo Hungria, que está adoentado e gostaria de ser promovido agora. Queria que o senhor levasse em consideração, e abro mão da minha promoção”. Ele respondeu “Vou levar em consideração o que o senhor está falando”. Foi muito seco, e pensei “estou frito”. No final o secretário nomeou o Paulo Hungria.
ConJur — E o senhor ficou na lista de espera.
Cezar Peluso — A vaga seguinte era para a Vara da Família, pensei comigo: “O que irei fazer lá? Não quero ir para lá. Agora vou ter de aprender a lidar com esse troço e vai ser um problema”. Sucedi o eminente Dr. Carlos Teixeira Leite. No começo foi um sofrimento, mas fui aos poucos me adaptando. Pensei que seria mais difícil essa rotina de ouvir pessoas em crise, com problemas graves, mas acabei gostando, me aprofundando cada vez mais. Dediquei-me absurdamente. Ouvia as pessoas com paciência, marcava audiência prolongada com os demandantes. O casal conversava, conversava, volta daí a dois meses. Aprendi uma coisa importante na área do Direito de Família: aprendi a ouvir, pois as pessoas vão lá como se fossem a um psicólogo, também em busca de conforto.
ConJur — Além de aprender, o senhor inovou, pelo que dizem.
Cezar Peluso — O fato é que comecei a estudar muito, fiz diversos cursos, me interessei por assuntos correlatos. Fiquei oito anos na Vara da Família. E ali o juiz não pode decidir sozinho sobre os problemas: por mais erudito e preparado que seja, ele não tem o conhecimento necessário de áreas específicas, necessárias no trato com as pessoas. Tem de se cercar de psicólogos, de assistentes sociais. Foi quando resolvi criar um grupo de estudos, reunindo especialistas de diversas áreas. Esse grupo, pioneiro no Brasil, se chamou Instituto Brasileiro de Estudos Interdisciplinares de Direito de Família e congregava juízes, procuradores da área de família, advogados, psicólogos, psicanalistas e assistentes sociais. No começo era um grupo pequeno, 25 ou 30 pessoas, e chegamos a fazer reuniões aqui em casa. O objetivo era entender como aplicar o Direito usando o conhecimento dessas áreas afins, tratando a família em sua globalidade. Isso foi importante e, a partir daí, mudou-se o enfoque do Direito de Família no Brasil. O instituto se tornou conhecido, difundido. Começaram a surgir núcleos em outras regiões: o Rio Grande do Sul criou um, outro em Minas Gerais — e este deu origem ao Instituto Brasileiro de Direito de Família. Mas minha grande preocupação como juiz de Família era que as pessoas ficassem felizes. Trabalhando em um conflito familiar a gente vê mil coisas. Naqueles casos onde não era possível fazer nada, sempre me preocupava que as pessoas saíssem tranquilas.
ConJur — Houve algum caso paradigmático?
Cezar Peluso — Muitos, mas vou comentar um. Tive uma ação de investigação de paternidade, uma baiana, família inteira da Bahia, essa moça deveria ter mais ou menos 35 para 40 anos. Ela estava registrada como filha do tio. O pai não quis assumir a paternidade e o irmão se apresentou no registro civil como pai. Acontece com esse assunto de adoção que não adianta esconder, pois a pessoa capta. A mente do adotado capta, e essa senhora sabia que não era filha do tio. Ela entrou com uma ação contra os dois. Ela sofria de uma bronquite crônica que chamamos de asma psicogênica: a pessoa, quando fica nervosa, tem agudas crises de asma. Para ela era um sofrimento impressionante. Bom, ao julgar o processo, ouvi todo mundo. Não havia erro. O pai falou com todas as letras, na frente dela. Foi algo muito doloroso essa audiência para recolher as provas. Só que houve um problema jurídico, ela havia perdido o prazo de declarar a paternidade, não podia mais mexer no registro. Aí o Munir Cury, um brilhante jurista e promotor, disse que iria arguir a decadência: “Não irei deixar você sentenciar no mérito, pois passou do prazo”. Pode arguir o que quiser, pensei. Mas comigo não irá passar em branco. Dei uma sentença, uma longa sentença, reconhecendo a paternidade, que estava provada por todos os fatos e depoimentos, ela é filha legítima do fulano e não do beltrano, e terminei afirmando: “Mas, infelizmente, não posso declarar isso na sentença porque houve decadência”. O brilhante Dr. Walter Maria Laudísio, o advogado da demandante, me disse que não iria recorrer da sentença: “Isso é o suficiente para a minha cliente”, contou. Passados seis meses, o Laudísio me procurou e disse: “Ela ficou boa da asma”. Veja, você estabelece uma verdade oficial que é importante para a pessoa, e essa decisão tem a capacidade de melhorar um problema físico.
ConJur — O senhor faria um paralelo entre esse episódio da baiana com o da Comissão da Verdade?
Cezar Peluso — São circunstâncias talvez de outro âmbito, não sei o que realmente essa comissão quer. Precisaria ser uma situação muito mais correlata. A verdade histórica do que ocorreu no país durante o regime militar todos sabem como foi. Há sempre um componente ideológico por trás disso. Mas o fato é que esses episódios da Vara da Família marcam muito. Senti-me até um pouco frustrado em sair da Vara de Família para ir para o tribunal. “Que pena, não vou poder mais tratar desses temas...”